A minha vida dava um livro… ou uma saga!
Hoje batemos o recorde. Trinta minutos à procura de um lugar para estacionar o carro. Chove a rodos e nem sei como vou tirar o miúdo do carro.
Ainda se fosse só o miúdo, estava tudo bem, mas não. É a mochila dele, que à sexta-feira já não consegue carregar (deve ser o peso dos trabalhos de casa de fim de semana), é a minha mochila do computador, porque o meu patrão diz que é melhor andar sempre com ele, não vá o diabo tecê-las e ser preciso resolver alguma coisa de última hora, é a minha lancheira, com as caixas vazias e a cheirar a azedo, depois de tapadas um dia inteiro, são as chaves do carro, de casa e as do escritório.
Bom mesmo é que elas não se enrolem umas nas outras quando as puxar do bolso (geralmente as fitas entrelaçam-se e é o cabo dos trabalhos para as tirar). Tudo isto porque as mãos já vêm tão ocupadas que não sobra nem um dedo para segurar o chapéu-de-chuva. Desde que proteja a cabeça dele, a mãe pode sempre levar com uns pingos grossos pelo pescoço abaixo que chega a casa fresquinha.
A temperatura baixou drasticamente
A chuva está pegadinha desde manhã, e agora é preciso percorrer os dois quilómetros e meio que separam o único lugar que encontrei para o carro, e a nossa casa, e tentar apanhar as varandas para me abrigar.
Ainda por cima só consegui estacionar em lugar pago, o que quer dizer que tenho que sair de casa antes das oito da manhã para mudá-lo para o estacionamento dos residentes, antes que venha a empresa de regulação do trânsito e me deixe o habitual convite para a sua festa.
Entrada mais barata 4,5€. Bilhete pago na hora. Se deixar para mais tarde sobe logo para 30€ e nem tenho direito a uma bebida. Eles não querem saber se tinha ou não lugares de residentes ocupados por não residentes que ficaram no café a ver a bola, porque o canal é codificado e em casa não têm. Oxalá percam, como castigo por roubar os lugares de quem aqui mora.
Carregada que nem um burro, o único passo que consigo ter até à porta de casa é o de caracol. E, escorregadio, porque está de chuva. Até parece que me estou a esquecer de alguma coisa. Conhecem aquela sensação de pedir ao cérebro para dar voltas e voltas e tentar perceber o que é que ficou para trás? Essa, mesmo. E, comigo é sempre a mesma.
Sempre que estou a chegar à porta de casa acho que não tranquei o carro. Dizem que é automático e que ao fim de uns segundos se fecha sozinho, mas eu não me dou lá muito bem com tecnologia e tenho níveis de confiança muito baixos nessa matéria.
Parece que me estou a esquecer de alguma coisa…
Vai de voltar atrás. Eu, o miúdo, os sacos, o chapéu e a chuva. Tudo rua acima, tudo rua abaixo e tudo rua acima de novo. E, adivinhem? O carro estava trancado. Desta é que vamos. Sem contar que já são 21h00 e ainda vou a pensar o que fazer para o jantar. Por mim, bebia um chá a ferver para aquecer os ossos que até estalam com o frio e enfiava-me na cama. Mas depois lembrei-me que tenho um filho com sete anos que deve estar esfomeado. Ele nem reclama.
O meu estado de cansaço é tal que acho que ele nem se atreve a dizer o que quer que seja. Lá com os botões dele deve imaginar que se abrir a boca a mãe talvez mande um berro capaz de se ouvir até Cacilhas. Não disse nada.
Passei-lhe a chave para a mãe e disse: vai à frente e abre a porta. Mas a lentidão própria da sua idade e depois de uma semana de escola intensa, de avaliações, de dias inteiros de máscara enfiada na cara, faz com que eu chegue quase ao mesmo tempo que eu. Meio a dormir meio acordado, apressa-se a dar as intermináveis voltas da fechadura que guarda o nosso pequeno castelo. Sim. Não parece mas aqui vivem um príncipe e uma rainha.
Não pensem que falo de mim. Pois depois de uma semana inteira de trabalho, aulas e de afazeres domésticos, o que menos pareço é uma rainha. Falo da gata. Tem 18 anos, casa, comida e cama lavada, dorme de dia e descansa de noite, qualquer canto lhe serve para fechar os olhos, e ainda tem um castelo só para si, durante horas. Isto de ser rainha, não é para quem quer, é para quem pode.
E a saga continua
Depois de pousar os sacos e mochilas que não se arrumam sozinhos (tento sempre, mas nunca acontece), partimos para os banhos, pijamas e jantares. Às vezes deixo alguma coisa orientada para o jantar, mas como foi dia de treino, que acaba tardíssimo, não houve tempo para fazer nada. Cá vai disto que amanhã não há.
Penso muitas vezes em fazer um batido de atum, mas era capaz de não resultar. Então, bato uns ovos, decoro o prato com batatas fritas de pacote à volta e sirvo ao estilo pequeno-almoço de hotel, só que já é de noite. Até a gata gosta do “pseudo bruch”.
Olhando para o relógio, batem as 22h30. Chega. Estou solenemente pronta para morrer para a vida, durante umas horas. Já só penso na minha cama. No meu colchão que me custou os olhos da cara, porque o médico disse que se não mudasse de colchão ia viver com as dores nas costas o resto da vida.
E, assim foi, 500€ depois, deito-me sobre a almofada, ela igualmente cara, proporcionalmente, e deleito-me no aconchego de um edredão de pele de carneiro que me ofereceram quando casei (ao menos valeu pelas prendas) e um cobertor de lã, herança do meu falecido avô.
Morta, mas viva!
Já não se fazem cobertores como estes. Pesados, enormes e quentes que se farta. Preparo-me para fechar a pestana quando dou com um verdadeiro movimento “ocupa” no meu delicioso momento que deixa de ser a sós e passa a ser de mãe e dona muito desejada nestas noites invernosamente gélidas.
O pequeno tenta a mini conchinha, colocando a sua perna sobre a minha e traçando a minha cintura com a sua pequena mão e braço. A gata, para garantir que o peso ajuda a aquecer, instala-se sobre a lateral da minha anca e aconchega-se, tornando-se imóvel como uma lapa pespegada numa rocha do pontão na Caparica.
Com tão auspicioso cenário, sou vencida pelo sono. Ainda que interrompido duas vezes, por esta bexiga noctívaga que insiste em ser despejada de três em três horas. Mas eu só sigo as recomendações médicas para me hidratar bem, sempre que vou dar sangue. E, hoje foi dia de fazer algo pelos outros. Vou, certamente dormir bem. Morta, mas viva!
A minha vida dava um livro… ou uma saga!
@Mulher Lusófona
One Reply to “A minha vida dava um livro… ou uma saga”