Almofariz de madeira

No tempo da minha avó… almofariz de madeira

Um corpo quase inerte, pesado e teimoso que outrora se cuidava sem igual. O asseio, a exigência, a preferência por unhas e cabelos arranjados.

Depois de ter sofrido vários AVC´s quase seguidos, a minha avó Xepa (Celeste) ficou connosco quase apenas só de corpo.

A alma ficou em Angola quando teve que enterrar um filho com sete anos de idade e a mente morreu aos poucos com tantos acidentes vasculares cerebrais (réplicas) por que passou ao longo de vários anos.

Um corpo quase inerte, pesado e teimoso que outrora se cuidava sem igual. O asseio, a exigência, a preferência por unhas e cabelos arranjados, quase todos os dias. Os vestidos que mandava fazer ao alfaiate, de propósito. E do tecido que sobrava, mandava fazer uma saia para mim e uns calções para o meu primo.

A minha avó nunca ficava sozinha

No tempo da minha avó, eu vivia diante de uma mulher ativa, rija que só passava a ferro em cima da mesa da cozinha e de madrugada, quando todos os outros estavam a dormir em casa, ou que passava a véspera de Natal a esfolar e temperar o cabrito, ou que juntava as suas economias para oferecer aos netos, os maiores ovos da Páscoa de Almada. Dela apenas restou um corpo inerte em estado vegetativo que, da cadeira da cozinha passou para a marquesa no quarto, onde esteve quase dez anos.

Era nessa cozinha que muitas vezes tomei conta dela. Não podia ficar sozinha. Precisava de companhia e de ajuda para comer, para ir à casa de banho, para se deitar. Enquanto isso, o meu avô ainda trabalhava. Eu devia ter uns 13 anos.

Saía da escola, ali perto, e rumava ao quarto andar, que tanto dava trabalho a subir sem elevador. Sentava-me na mesa da cozinha ao pé dela e fazia os trabalhos de casa. Explicava-lhe tudo mas acho que não entendia quase nada.

Às vezes, nem sabia se me ouvia mesmo. o que eu via era apenas um corpo quase inerte, pesado e teimoso que outrora se cuidava sem igual. O asseio, a exigência, a preferência por unhas e cabelos arranjados.

Mas nunca desisti.

Sempre que acabava os trabalhos jogava com ela à paciência. No fundo, ela é que tinha uma grande paciência para mim e para os outros três netos, que existiam.

O Natal, como nunca mais!

Dávamos-lhe cabo da casa entre o Natal e a Passagem de Ano, mexíamos em tudo… mas eu sei que ela, no fundo, bem lá no fundo, gostava de ver os netos felizes a correr para tirar fotografias com o seu telefone branco, daqueles bem antigos…

Era a vida dela. Depois de ter perdido tragicamente um filho com sete anos, do qual todos sabemos que nunca recuperou, ao dia 10 de Junho, nunca se acendia a televisão, e as luzes nunca mais se apagaram totalmente.

Existia nela um vazio que nunca ninguém conseguiu entender na certa! Creio que, só quem perde um filho pode sentir tamanha dor e saber o quanto ela dura.

Todos respeitavam aquele sentimento e, àquele dia, naquela casa nada se passava. Apenas um silêncio ensurdecedor. Em memória do tio Alfredo.

Mas os outros dias eram de festa. Não que ela a pedisse mas eu dava-lhe.

Em tempo de férias, a minha maior alegria era ir para casa dela. Subir aquele horrível quarto andar sem elevador e ficar ali com ela a ouvir o magnífico e estonteante programa “o Jogo da Mala” com António Sala e Olga Cardoso. Todos os dias ouvíamos e sabíamos quanto estava na mala mas, nunca ninguém nos ligou a perguntar. Até tínhamos uma lista onde apontávamos todos os dias a data e o valor em jogo. Mas nunca nos ligaram.

Karaoke à moda antiga

A nós, pouca diferença fazia. A gente divertia-se na mesma. Especialmente quando começavam os discos pedidos e eu pegava no almofariz de madeira (para os mais jovens, o pilão ou o esmaga alho) e imitava os cantores da rádio. Não cantava nada, mas eles também não ouviam o meu playback barato com o esmaga alho.

A minha avó coitada não tinha escapadela e tinha que gramar com uma espécie de mistura entre a gala dos pequenos cantores e o Festival da Eurovisão. Ela até gostava e batia palmas… Era uma exigência do público.

Lembro-me como se fosse hoje.

E lembro-me também, como se fosse hoje, o dia em que ela morreu. Era de madrugada quando ligaram lá para casa. O meu pai saiu de casa e disse:

– Ficas aqui que eu vou lá ajudar a tratar das coisas.

Claro. Fiquei até ele ter saído. Mas como ainda era de noite, vesti-me e peguei na bicicleta. Desci a Avenida e apareci lá em casa. Ninguém se zangou. E no meio da confusão, fui eu e o meu pai que escolhemos o mais belo vestido, as meias, os sapatos e o casaquinho que a avó Xepa levou vestido para a sua última viagem.

Morreu cedo demais e ainda me fez tanta falta!

Partiu como ela era, arranjada, asseada e sempre pronta, num corpo quase inerte, pesado e teimoso que outrora se cuidava sem igual. O asseio, a exigência, a preferência por unhas e cabelos arranjados. Só não precisava ter sofrido tantos anos, deitada numa cama a ver e a rever histórias, umas melhores que outras, mas todas as que passaram pela sua vida.

Esta sim, é uma avó que deixará saudades pelo seu coração grande e de partilha, pelo que me deu e pela companhia que me proporcionou. Morreu cedo demais e ainda me fez tanta falta!

Texto de Rita Simões

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